12 março 2006

Cineastas, diretores e produtores discutem os caminhos do cinema digital

Cinema digital
(R)Evolução cinematográfica?

Reduzir custos de filmagens cinematográficas em menos da metade parece um sonho impossível para profissionais do ramo, mas o fato é que o cinema caminha cada vez mais para a democratização, graças ao sistema digital, que vem sendo tão debatido nos últimos anos. A nova tecnologia, que não pára de ser aperfeiçoada, caiu nas graças de cineastas como George Lucas, Lars Von Trier, Spike Lee, Mike Figgs e outros, sem contar brasileiros como Eduardo Coutinho e Domingos Oliveira, que vem exibindo em festivais seu último trabalho realizado com apenas R$ 35 mil. Este baixíssimo orçamento de “Carreiras” foi possibilitado pela escolha do digital e pela cooperativa de técnicos e atores formada pelo diretor.

Cineastas juizforanos também experimentam o novo formato. A Groia Filmes, criada em 1999 para a realização do curta “Calçadão”, de Franco Groia, tem implementado cursos livres intensivos e de cunho profissional dentro de tecnologia de pós-produção e produção digital, tratamento de imagem, efeitos especiais e edição. A proposta dos sócios Franco e Flávia Lima é formar um leque de profissionais gabaritados nesta convergência tecnológica, a fim de atender as demandas locais.
O digital também aumentou as perspectivas de estudantes como os da faculdade de cinema de Juiz de Fora, Josy Visonar e Cacinho, premiados no último ano no concurso Trama Universitário por um videoclipe para música de Tom Zé. Motivados, os jovens realizadores continuam a produzir e acabaram de lançar o curta “Sofia”, recém-exibido na cidade. Para o assistente de direção e videasta paulista Eduardo Aguilar, o digital viabiliza e concretiza o processo prático do aprendizado. “Se pensarmos em utilizar a película nesse tipo de estrutura, estaríamos inviabilizando a realização de oficinas ou, no mínimo, confinando-as ao contexto teórico”, diz Aguilar, que viaja Brasil afora ministrando oficinas.
Qualidade da imagem
As produções cinematográficas em sistema digital, com cópia em fitas ou HD (disco rígido), podem ser exibidas tanto em tela grande quanto em aparelho doméstico de TV sem, no entanto, fazer com que as diferenças de imagem em relação à película passem incólumes pelo espectador.
“O que observo no dia-a-dia junto aos amigos, cinéfilos ou não, é que, nas exibições que têm utilizado cópias digitais, o público pouco se dá conta das diferenças de imagem, e em relação aos filmes realizados diretamente no suporte digital, as diferenças são percebidas ainda que de forma inconsciente através de um certo incômodo”, constata Aguilar, ressaltando que, caso o filme agrade enquanto proposta, isso não pesa na avaliação. “Evidentemente, os mais bem informados e que detêm maior capacidade técnica para avaliar as questões de definição de imagem reclamam em especial das exibições digitais de filmes captados em película”, diz o assistente de direção.
Para Aguilar, o público é quem menos se importa com as discussões estéticas. “Claro que, se nivelarmos por baixo e aceitarmos as atuais condições de qualidade do digital como definitivas, sem cobrarmos insistentemente pelo seu aprimoramento, isso acomodará os padrões de exigência de imagem em um patamar inferior”, alerta. Ainda não muito “encantado” com as vantagens do digital, o diretor Carlos Reichenbach - um dos mais respeitados diretores em atividade no Brasil, responsável, entre tantos, pelos mais recentes “Garotas do ABC” e “Bens confiscados” - considera o atual sistema de projeção digital uma televisão gigantesca.
“O cinema levou mais de cem anos para se aproximar da pintura, e a imagem digital jogou isso na latrina”, completa Reichenbach. “Não sou contra o digital, sou a favor da película para os filmes que exigem um trabalho acurado de cinematografia, mas rodaria tranqüilamente um longa todo com câmera numérica (digital) se precisasse de agilidade e pouquíssimos recursos técnicos”, justifica o cineasta.
O juizforano Franco Groia, em fase de finalização de seu último filme, “Chave”, em que utiliza processo de intermediação digital, diz que a principal diferença da película para o digital é o barateamento da produção com este último, além da promessa do também barateamento dos ingressos para o público, com as ainda incipientes projeções digitais. Para Groia, a tecnologia digital caminha para o aperfeiçoamento da imagem. “Vendo pela TV, não se tem perda alguma da imagem. Mas, na telona do cinema, a película é de longe a coisa mais cristalina e perfeita. A imagem feita de grãos de prata é algo diferente dos pixels do computador”, opina Franco.
Democratizar sim, mas sem banalizar
O cineasta juizforano Marcos Pimentel teme que o acesso facilitado pelo baixo custo do digital banalize o critério cinematográfico. “Democratizar é ótimo, mas, com fita digital barata, todo mundo está saindo para filmar. É comum ver pessoas com horas e horas de material. Quando chegam para editar, descobrem que fizeram a parte de pesquisa filmando. Só sabem qual filme deveriam fazer depois que deixaram de filmar. Precisamos continuar pensando à moda antiga”, diz Marquinhos.
Especialmente quando se trata de documentários, a praticidade do formato (digital) determina novas linguagens e um aumento significativo da produção. A produtora Flávia Lima, sócia da Groia Filmes, afirma que a grande maioria dos documentários é feita em vídeo digital. “Película é muito cara, e rolos de negativo 35mm duram quatro minutos, os de 16mm, 12 minutos. Em documentário, coisas inesperadas aparecem, e é legal não ter que parar para trocar um rolo de negativo”, explica Flávia.

A produtora ressalta que, no processo de finalização, pode-se transferir o documentário para o rolo de negativo, de forma que o filme rode em um projetor de cinema e possa participar de festivais como película. “Infelizmente, os cineastas vão acabar abandonando a película... Mas concordo que, como no documentário, a estrela é o assunto, a câmera numérica facilita tudo”, conclui Reichenbach.
A demora para a implantação do cinema digital não é pela qualidade de imagens, cores, contrastes... A briga é comercial. É briga pela venda de filme virgem para produção e cópias, é briga por distribuição e por exibição. Para o assistente de direção e videasta Eduardo Aguilar, será uma pena se o digital for imposto pelo rolo compressor do mercado. “Seria bem melhor que o caminho fosse o contrário, que através da ousadia e da experimentação, os jovens realizadores provocassem a melhora dessa ferramenta e a sua imediata implantação”, diz ele.
Aguilar entende que há certa resistência em abandonar a película. “Como se não bastassem as diferenças de qualidade a favor da película, ela guarda em si um certo ‘glamour’ que fascina a grande maioria dos envolvidos com o meio, mas entendo que a mudança é inevitável, e que o fator determinante será o econômico, o que já vem sendo percebido pela indústria de Hollywood; e, contra esse poder de discussão, todos serão voz vencida.”
Linguagem x formato
A maioria dos profissionais de cinema ainda considera o digital um formato. “A linguagem do cinema continua sendo do cinema. Claro que tem coisas que a TV aperfeiçoou, mas o cinema continua tendo esta hegemonia em forma de linguagem”, diz Franco Groia. Já Marcos Pimentel aposta que o digital vai acabar incorporando novidades à linguagem cinematográfica, mesma opinião de Eduardo Aguilar.
“Quando penso nisso, me vem à cabeça a idéia de uma linguagem já estabelecida que sofrerá mutações, mas não uma ‘nova’ linguagem. No entanto, admito que se pensarmos o digital além do suporte, enquanto processo de distribuição via internet, em uma provável interatividade, certamente, poderíamos estar falando de uma nova linguagem”, diz Aguilar.

Carlos Reichenbach enfatiza a necessidade de desmistificar a palavra digital como se ela fosse a “panacéia”. “Infelizmente, tem gente encarando o digital como uma linguagem. Por isso o cinema está ficando muito parecido com a televisão. Se o optical disk (suporte) ou qualquer outro suporte mais amplo e generoso que o negativo fotográfico for adotado mundialmente um dia, aí sim poderemos ver nascer uma nova linguagem, porque as possibilidades plásticas e inventivas do cinema se tornarão infinitas”, prevê.

Aguilar considera esta discussão ainda acanhada. “Como qualquer novidade, as pessoas temem as mudanças. Foi assim na troca do cinema mudo para o sonoro, do preto e branco para as cores. Acho que ocorreram perdas em ambos os casos, mas houve recomposição dessas perdas através de novos ganhos”, ressalta. Discussões à parte, o assistente alerta: “Assim como não faz sentido ter saudades da máquina de escrever, acho que é preciso explorar o digital, apontar suas falhas, mas trabalhar junto e a partir dele”.
Diferenças, vantagens e desvantagens
No cinema em película, a imagem atravessa a lente de uma câmera cinematográfica e vai impressionar o filme virgem. Finda a filmagem, o filme é retirado do chassis e mandado para o laboratório, passando pelo processamento caro de revelar, telecinar, criar efeitos especiais e editar. No cinema digital, a imagem também atravessa a lente de uma câmera, porém não sensibiliza uma película cinematográfica. A imagem é convertida imediatamente em sinal eletrônico e não é preciso filme virgem, além de os custos com compra de HD (hard disk) serem fixos. A edição é ágil - já que não precisa de moviola (mesa de montagem profissional) - e, quando fica pronta no arquivo do computador, faz-se a cópia final para exibição diretamente de HD para HD ou em fita para exibição em salas de cinema digital e TV. Computadores domésticos equipados com portas IEEE 1394 (FireWire, I-Link (Sony), Pinnacle DC-30 de preços entre US$500 a 3 mil) permitem editar, mixar e até mesmo adicionar efeitos especiais.

(Matéria publicada no Jornal "Tribuna de Minas" - 12 de março de 2006)

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